domingo, 15 de novembro de 2009

O Nosso Leito


Lancei-me ao nosso leito
ardendo de desejos, em loucura,
e tu me recebeste insensível com teus beijos
ainda que eu guardasse olhares de ternura.

Tentei tocar o teu corpo,

mas tu estavas tão fria, distante...
e ficava o teu gelo a contrastar com o meu fogo:
havia duas pessoas, apenas um amante.

Inutilmente vibrava no meu peito

um coração que por tantas vezes chorava:
eu sofria por senti-la morta em nosso leito,
eu sofria porque o nosso amor já se apagava.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Lição Póstuma


Sentado ao som do violão de Paulinho Nogueira, aquele homem de meia idade olhou o relógio e notou as horas passando. Quando lembrava das boas coisas, elas passavam rápido; quando os pensamentos eram de tristeza, os minutos se tornavam horas. É incrível como a nossa noção de tempo é relativa!

O homem tentava escrever alguma coisa, a sua alma pedia por isso, mas não havia nada de concreto que realmente o fizesse combinar umas palavras em busca de um poema ou um texto qualquer.

– Nada! Como pode? Sempre foi tão fácil escrever. O que incomoda tanto o meu coração que nenhuma inspiração parece estimulá-lo? – falou para si mesmo.

As horas passavam e parecia que aquela seca literária ainda estava muito longe de terminar. Preocupava-se com os prazos do fechamento do jornal, pois precisava logo enviar alguma coisa se tencionava manter a sua coluna semanal.

Em meio a uma inexplicável falta de idéias, resolveu deixar o notebook meio de lado e foi até um pequeno armário de madeira no canto da sala. Abriu uma pequena porta que resmungou, e o fez lembrar que alguns pingos de óleo se faziam necessários naquela velha dobradiça. Colocou de lado uma pequena placa e retirou uma caixa de sapatos bem desgastada, com as pontas amassadas e alguns pedaços de fita crepe segurando onde ela teimava em se desfazer. Sentou-se no chão embaixo de um abajur bem alto, acendeu-o, passou a mão pela tampa retirando uma espessa fuligem e era possível ler “Memórias: alegrias, frustrações e fuga da realidade”, tudo escrito com um pincel atômico azul.

O escritor olhou por alguns instantes para aquela caixa, hesitou. Havia tanto tempo que não a abria... Sentiu um leve calafrio percorrer a sua coluna, como um aviso para manter tudo ali dentro no mais completo esquecimento. Lembrou-se do prazo e que seu editor ficaria furioso se não houvesse algo para publicar. Respirou fundo e abriu a tampa, expondo uma grande quantidade de fotografias de todos os tamanhos.

Não havia uma maneira fácil de fazer aquilo, o único jeito era enfiar a mão ali dentro e começar a colocar para fora todas aquelas imagens de tantas épocas. Na ânsia de que alguma inspiração viesse ao seu encontro, o escritor virou todo o seu conteúdo no chão e o espalhou com as mãos. Todas aquelas fotografias pareciam formar um mosaico multicolorido da sua vida, e à primeira vista era até bonito de se ver. Ao dar uma boa olhada por cima começou a reconhecer alguns rostos do passado – muitos deles, ele fazia questão de esquecer –, mas uma fotografia em especial chamou a sua atenção; uma fotografia tão cheia de recordações que o fizeram abrir um sorriso quase instantâneo.

Lembrou-se daquela tarde de verão, do calor, da brincadeira com a mangueira ao molhar os seus irmãos, e do escorregão que lhe custou um joelho ralado e algumas poucas lágrimas.

– Eram tempos felizes. O que foi que mudou? – perguntou a si mesmo. Talvez mais algumas olhadas o fizessem lembrar o que havia mudado e assim ele poderia voltar a escrever.

Em meio a alguns álbuns, uma foto sua com o uniforme da velha escola. Quando aprendeu a ler e escrever, teve a certeza de que faria isso pelo resto da vida. Amava os livros, as letras, o universo maravilhoso e fantástico que podia criar dentro da sua mente. Em seguida encontrou uma pequena carta com a letra de uma menina; foi a primeira carta de amor que recebera da com quem, anos mais tarde, namorou.

De repente encontrou uma imagem bem conhecida dentre todas as outras: a foto do seu querido avô, mas sentiu um aperto no peito e uma tristeza imensurável. Veio-lhe à mente uma recordação da qual não gostava e que há tanto tempo tentava sufocar: a morte do seu avô. Não foi algo que alguém pudesse dizer: “já era chegada a hora e ele já tinha muita idade, viveu bastante, não houve sofrimento”; se assim fosse, seria bom. No entanto, seu avô foi morto diante dos seus olhos por um assaltante que estava drogado. O pobre coitado morreu porque tremia de medo pela segurança de seu neto e não conseguia tirar o relógio do braço. Um tiro no peito, não houve chance de reação. Agora lembrava onde havia começado a sua descrença na humanidade e em todo e qualquer bom sentimento; tornara-se cético e frio, e sentia por sua condição.

Então as memórias das tantas coisas divertidas que havia feito com o seu avô começaram a voltar: as tardes que passavam sentados na varanda, as pescarias, empinar pipa, subir em árvore. De todos os netos ele era o mais próximo do avô, aquele a quem o velho homem chamava de “parceiro da bagunça”. Então fechou os olhos e teve um sobressalto, algo que retornou de súbito em sua mente sobre aquele dia. Não era nada propriamente sobre o crime em si, mas o diálogo que se deu em seguida, quando ele estava sentado no chão – chorando – com a cabeça do avô em seu colo:

– Não morra vovô, agüenta mais um pouco – dizia ele em prantos.
– Não fique assim meu filho, não precisa chorar. Eu nem mesmo estou sentindo dor. Fico feliz de saber que perto do meu fim o meu melhor amigo está aqui comigo.
– Vovô, por favor, não fala assim...
– Não se preocupe tanto assim comigo. A morte é uma coisa natural da vida e todos nós estamos destinados a ela. Lembre-se sempre das coisas boas que vivemos juntos, celebre a vida! E não esqueça jamais que eu o amo, meu neto, e não poderia escolher pessoa melhor para estar ao meu lado nesse momento.
– Agüenta só mais um pouco vovô, a ajuda está chegando – dizia ele desesperado, mas seu avô já havia perdido os sentidos e faleceu a caminho do hospital. O neto estava ao seu lado, segurando a sua mão, quando finalmente partiu.

Aquelas palavras voltaram com tanta força que ressoaram como se fossem ditas naquele exato instante: “Celebre a vida!”. O escritor não teve dúvidas, levantou-se, sentou-se de frente para o notebook e começou a escrever algo assim: “Gostaria de falar sobre alguém muito especial, com quem eu aprendi que somente o amor pode dar algum significado às nossas vidas...”.